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Samba Fandango

por Andreas Chamorro
Capa do livro "Samba Fandango", de Andreas Chamorro, mostra uma cadeira coberta por panos e duas garrafas em cima do assento

Andreas Chamorro nasceu em 1994. É escritor, editor e autodidata. Enquanto escritor, publicou as coletâneas de contos Divindades Solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Patuá, 2023). Tem textos publicados em antologias como a Zarpadas (Abarca Editorial, 2023) e em revistas digitais. Enquanto editor, trabalhou em mais de 15 títulos pela Editora Patuá. “Samba Fandango”, contemplado pelo ProAC, é seu segundo romance.


Como conheci o terreiro? Fui lá uma vez e foi um dia horrível, não só pra mim, pros meninos que ‘tavam com a gente, mas principalmente pra Diaba. Foi uma festa, uma festa importante, era aniversário do pai de santo. Aniversário de santo, que é como eles dizem. A Diaba me convidou dois dias antes, em uma sexta-feira, eu lembro como hoje. A gente ‘tava no Baile do Vodú, era a primeira vez que fazia Baile do Vodú desde a última guerra, quando Quitungo terminou de limpar o morro dos traficantes menores. Quitungo, o dono do morro dessa época, o chefe. Tanta coisa, porque nesse tempo, não sei, parece que a vida fez com que tudo acontecesse do jeito que aconteceu. Nessa noite encontramos todos, o bofe que a Diaba mais amou, que a gente chamava Pardal – ele era do tal terreiro. Também Pedro, que a gente chamava Pombo, ele também era do tal terreiro e, se eu não me engano, num patamar maior que o do Pardal, até da Diaba, e o namorado dele, o Windson, que conhecemos naquele dia, pra marcar. O Lombra, que a gente chamava Rima também, ‘tava com o Pombo pra cima e pra baixo e os dois eram vapor numa boca de Quitungo, andavam muito juntos. O Cadú, que também conhecemos nesse dia e que depois a gente ia chamar Cajú, como o Pombo e o Rima, que eram os amigos de infância, chamavam ele. E ainda de quebra apareceu do nada um magrelo que chamava Lucas Rafael, mas que os meninos chamavam Tripa, mas ele nem foi tão importante esse dia. Os meninos vieram lá de baixo, ‘tavam em um bar e a gente ‘tava em outro, só que eles subiram junto com os quitungos e o próprio também, em pessoa; o baile inteiro olhou, não tinha como não olhar, era um afronte. Quem criou o Baile do Vodú foi o Vodú, o Venâncio, que era um traficante livre, ou seja, um inimigo do Quitungo, porque ele nunca deixou traficante se crescer, quanto mais um que se sustentasse sozinho, mas o Quitun- go não podia mexer com ele sem pensar, o Venâncio era do terreiro velho lá do Topão e o Quitungo tinha respeito pelo terreiro mais velho, isso era coisa dele. Ah, tu és de lá, então tu conheces a figura. Se tu sabes quem ele foi, menino, então sabes o afronte que foi Quitungo e os quitungos dele desfilarem naquele baile. Mas eles fizeram, eles desfilaram. E Pombo, Windson, Rima e Cajú com eles.

Muita coisa. Foi a primeira vez que vimos o tal bofe do Pombo. Quando eu e a Diaba vimos que era pra eles que todo mundo ‘tava olhando e que eles ‘tavam vindo até a gente o que comentamos foi sobre o bofe do Pombo, Eu sabia que era uma chuchinha, a Diaba disse, E é, não ‘tou enxergando bem. De longe eu via, o Pombo branquíssimo, e o menino, mais baixo, mais moreno, de boné e camisa como ele, porque nessa época, aqui em Enseada, o funk ‘tava cada dia mais forte então os favelados daqui se vestiam como se estivessem nos anos setenta, iam pro baile de carro, até já vi colocarem as namoradas no capô e entrar na muvuca com o carro andando. Chegaram em bonde, como dizem. Vestidos como funkeiros, não como bandidos, apesar que os bandidos se vestiam como os funkeiros e ainda deve ser assim. Eles cumprimentaram a gente, a Diaba e o Pombo se abraçaram. Eles se gostavam muito, foram fiéis um ao outro quase até o fim, e quando brigaram foi por causa da guerra.

Eu vi o Quitungo a primeira vez aquele dia, e olha, ele era sim um homem bonito, quem demoniza não enxerga, até dá pra acreditar em quem disse que teve caso entre ele e a Diaba. Mas, tive medo, um medo danado. A fama daquele homem era alta, então olhei no olho pra não me mostrar inferior, mas também não olhei demais. Ele, o Pombo e a Diaba começaram a falar do terreiro, que teria a tal festa, uma festa assim, assado, que o pai de santo velho ‘tava comemorando anos. E me convidaram. Pombo, de primeiro, e depois a Diaba convidou também. O Quitungo disse que eu seria bem-vinda, olhando bem no meu olho.

Depois, não demorou muito, o Pardal apareceu. Não foi cumprimentando, nem chamou a atenção pra se achegar. Não, ele surgiu tacando o punho duro na fuça do macho que tentava dançar com a Diaba. Eles ‘tavam brigados esse dia, o Pardal e a Diaba. Discutiram na casa dela antes de ela vir pro baile, ela me contou. Que enquanto eles se atracavam na cama, tudo bem, mil maravilhas, mas quando ela avisou aonde ia dali pras dez da noite, ele se tornou com um bicho, gritou e esberrou e proibiu. E isso mexia com ela, mexia muito. O Pardal foi o único homem que eu vi essa mulher amar de verdade, e isso é opinião minha, minha visão, do que eu vi, do que eu acho. Eu imagino que ela quase cedeu, porque quando contou, cena por cena, do que aconteceu pra mim naquela noite do baile, deu pra ver, deu sim, que ela ficou é molinha dizendo, contando, ela ficou com olho mel e quando o olho dela não ‘tava preto e ‘tava mel e o vermelho do branco sumia prum amarelo era porque ela ‘tava calma e dava pra falar, mas com Pardal o mel era mais, nos olhos e na doçura. Achei estranho. Ela quase deve ter cedido, e ele deve ter falado e esbaforido como macho de mulher cis, macho de mulher de macho. Como? Mulher de malandro? É uma boa também, porque Pardal não deixava de ser um. Deve ter sido um arerê e ela deve ter ficado com uma parte do coração na mão, porque aquele homem foi o que enfrentou um bando de amigos homens pra cima dele porque ele queria namorar travesti, aquele homem que, depois de não sei quantos foras, ajoelhou com um buquê com umas florezinhas feias e machucadas e implorou pra ela e ela, que ‘tava acostumada com homem se ajoelhar apenas para gravar a neca dela, não conseguia acreditar que homem podia ajoelhar na frente de uma travesti pra fazer outra coisa, como pedir pra namorar. Ela deve ter ficado mexida, mas a travestilidade, meu querido, é como cuidar de uma planta, precisa de um zelo, precisa da rega, do olhar, se não perde a beleza, a estrutura, a Diaba deve também ter ficado com uma outra parte do coração na mão com sua travestilidade, porque ela ‘tava acostumada a ser fiel com ela mesma. E quem ganhou foi ela mesma, porque a Diaba foi pro baile. [Juma finge beber enquanto balança o quadril. Titânia não solta o ritmo, busca a carteira de cigarros na bolsinha. Não encontra. Juma, sem deixar de dançar, aponta a unha comprida. Titânia gruda o queixo no colo e encontra o maço preso pelo tomara que caia. Estende um cigarro a Juma e pega outro para si. Sorri. Dentes brancos, um canino com uma capa de prata] Encontrou comigo e fomos juntas. Por isso o macho que ‘tava querendo dançar com ela teve cara de pau. Achou que a Diaba ‘tava sozinha. Assim, digo, sozinha de homem, que ‘tava solteira. O Pardal viu o que ‘tava acontecendo porque o sem-vergonha ‘tava seguindo a gente o baile todo, talvez até desde quando a Diaba saiu de casa, a gente é que não viu ele, porque ele era magrinho, não era alto, se vestia às vezes como velho, mas tinha seu charme, ele tinha um ar, não sei dizer. Ele exalava, sabe? Não, não vimos ele. Só quando ele surgiu como se fosse um samurai, um ninja, do meio da muvuca e socou o homem mais alto que ele ao som de algum rap, Rap da Felicidade, Rap do Rastafary, Rap do Catiri, acho que o Rap do Rastafary, se a lembrança não me for mentirosa. Eles se engalfinharam no chão, rolaram na guia, sujaram as roupas, o Pardal levou soco também. Até que o Quitungo, sem dizer nada, só andou até eles pra que eles vissem quem era que tinha chegado e parassem na hora, como se fossem cachorros. Pombo e Rima chisparam o bofe, Pardal se juntou com a namorada – mais tarde nessa noite que a Diaba ia ver o macho dela agindo como namorado na frente de todos, lembrando que ele, o Pombo, a Diaba e o Quitungo eram do mesmo terreiro e no terreiro, parece, ninguém sabia. O terreiro lá que curou a Diaba, que Tânia conheceu a pombagira.

Depois foi a tal da função. Quitungo avisou, não sei se para o Pombo, não sei se para o Lombra, que tinha uma função pra eles cumprirem, e deve ter dito quem ele queria que fosse porque o Pombo e o Lombra chegaram e falaram nossos nomes, o Pardal, a Diaba e eu – lembro que um pouco antes disso Tripa, o cliente, um menino novinho de tudo, eu não daria mais de dezesseis anos pra aquele menino, ele veio e chamou o Lombra de canto, pelo o que eu vi, do jeito que se portava, queria droga e deve ter achado que os vapor da boca em que ele gostava de comprar levavam estoque pra baile como se eles só fossem isso, mais nada. Nunca gostei desse Tripa. Fomos de moto e alguns a pé. Subimos o morro, fomos até o Parque Oroguendá, em um campado baldio, escuro, com um poste só, amarelão. A função na verdade era um baile só nosso. Quitungo tinha sumido quando todos se encontraram, mas não demorou e apareceu de carro, um opala verde folha que era conhecido pela favela. Ele abriu o porta-malas e tirou drogas e bebida. Aparelhou o somzão que tinha no carro. Alegou que o pai dele ia fazer aniversário de santo, que era pra comemorar. E a Diaba, o Pombo, o Pardal e os bofes quitungos concordaram muito. Enquanto os outros todos, o Cajú, eu, o Lombra e o Windson, a gente só se deixou ir, sem entender direito o que era aquilo de idade de santo, só com uma suspeita do que seria porque a gente era favelado e favelado é acostumado com macumba. E assim fez dois bondes. No meio do campado, debaixo da luz do poste, colocamos alguns pneus que ‘tavam lá largados para ficar eu, a Diaba, o macho dela e o Cajú conversando e bebendo e fumando. Do outro lado, debaixo das árvores, mais longe da luz, ficou o Quitungo, os quitungos dele e o Pombo e o Windson, também trocando papo. O Pombo devia estar desconfortável, pois não parava de olhar pra cá e algo acontecia também com o Quitungo e os quitungos dele pois não paravam de olhar pra mim. Porque é isso que a gente faz, a gente é animal, a gente não deixou de ser mais nada que animais, com a cachaça e a droga no couro então. Lei da Selva. Naquele campado tinha mensagens, mensagens que ninguém via mas que todos queriam que todos vissem. Cada um ali queria alguma coisa. O Pombo talvez quisesse provar alguma coisa, mas quase não tocava no namorado, ficavam um do lado do outro como se fossem amigos e dava pra ver que o Windson, que por mais que tivesse vestido como machinho, ‘tava ferido, ‘tava recuado, era uma andorinha, logo o desejo dele era que Pombo as- sumisse ele de verdade, igual o Pardal ‘tava fazendo com a Diaba, pegando na cintura dela, dando beijinho na boca dela. Eu não reconhecia ela, eu lembro que eu olhava e ficava estranha, uma sensação de que ela era outra pessoa ou que a pessoa que ela ‘tava sendo era a pessoa de verdade que ela era, eu fiquei confusa, porque olhava e lembrava dos anos de avenida que mostravam a pessoa que eu conhecia, que era uma carrasca dominadora e controladora, sempre de olho em tudo, a Diaba sempre olhou nas alturas, como se andasse na ponta do pé, ela não era aquela travesti que parecia ter quinze anos, aquela novata, sem peito, no hor- mônio ainda, que fica mole com o primeiro macho que diz palavras bonitinhas pra ela. Tudo bem que ela não ‘tava mais na avenida, depois da rebelião ela saiu, alugou uma casa no Parque Oroguendá e começou, assim, modo de dizer, a atender em casa, porque a verdade é que ela não conseguia muita coisa, como já falei, a Diaba não tinha muito axé pra isso. Quem ficou com ela no fim fui eu e mais algumas, mas, mais eu. Por isso eu ‘tava ali e por isso eu ‘tava confusa olhando aquela Diaba fechar o olho com uma cheirada no cangote. Nem a cachaça conseguia me tirar a atenção daqui- lo. Então, eu desejei, desejei ter aquilo também, a primeira vez na minha vida. Porque nunca quis, eu nunca quis um macho pra casar, nunca tinha tido essa fantasia. Porém, naquela noite tive sim e pensei que, depois do baile eu ia atender, noutro ponto, mas ia, a vida não tinha parado pra mim, o que tinha apenas parado até arrumar de novo era o ponto da Atlântico, e de fato, não demorou e outra travesti, não a Vanessa, a rebelde, uma outra, começou a dominar ali, mas de um jeito mais brando do jeito da Diaba, depois me contaram. Sim, eu ia trabalhar naquela noite ainda, mas decidi que eu poderia trabalhar mais cedo. Então, deixei aqueles machos me olharem, e comecei a olhar também.

Não sei quais as vontades dos outros. Fui conhecer o Lombra e o Cajú melhor só um tempo depois, algumas se- manas depois, na verdade. Mas, dá pra se ter uma noção. Porque assim que todos nós ‘tava bêbado, visivelmente, a interação deu corda de verdade. Nesse intervalo, três pessoas surgiram ali. Primeiro passaram duas meninas, novas, da idade de Lombra e Pombo, uma delas caindo de cachaça ou sei lá o quê. Deviam morar ali e ‘tavam cortando caminho pelo campado, mas Pombo reconheceu uma delas. Com desconforto, que eu lembro da cara dele, mas reconheceu. Depois eu fui entender a novela. A menina que ele reconheceu chamava – chama, porque eu acho que não morreu, para mim ela ‘tá é por aí, vivíssima – Kesley, esse o nome dela, ou Pocahontas, Índia, e outros apelidos. Essa menina tinha um filho com Pombo, olha a novela. Um filho pequeno, tinha um pouco mais de um ano, acho, porque eu nunca vi, só falo o que a Diaba me contou. Só que é que era isso e ele ficou desconfortável, porque o Windson não sabia e talvez também a Kesley não sabia que o Pombo agora ‘tava de caso com outro homem ou desconfiava e não acreditava, ela teve quase a mesma reação que o Pombo. A outra, que era prima da Kesley, quase não viu ninguém. Essa ‘tava ruim, eu digo. Ela ‘tava sendo arrastada pela Kesley praticamente, curvada e apavorada, como se fosse desmaiar. Pombo perguntou o que pegava que ela ‘tava assim e Kesley falou que elas ‘tavam no baile e que a prima tinha bebido demais e que agora ‘tava levando ela pra casa dela – da Kesley – pra dar um banho nela e fazer ela deitar. Mas, pareceu, não só pra mim quanto pro Pombo ou pra outro que ‘tava no momento e olhando pra ela – a Kesley – assim, bem iluminada, debaixo do poste, de um jeito que a gente conseguia enxergar com nitidez cada expressão do rosto dela, que ela ficou com vontade de ficar a com a gente ali, que meio que, pela cara mesmo, ela tinha desistido de levar a prima pra casa dela, como que quisesse ficar não só pra beber como pra ver como o pai do filho dela ia agir com ela com o namorado dele ali, ou até ela queria ficar pra incomodar sabendo que seria um incômodo pro Pedro ter a presença dela com a gente e com o Windson ali do lado. Porém, eu ‘tava bêbada, e olhando os três homens que me olhavam – porque eles não iam olhar a Diaba com o Pardal ali e do jeito de namorados que eles ‘tavam –, os três, o Quitungo, o tal Agué e o outro que depois fui saber ter o vulgo de Farda. Que que eu fiz, peguei a menina, disse que ia cuidar dela pra Kesley e, na frente dos homens, de um jeito que eles me vissem toda, levei a menina até a beira do rio, fiz ela vomitar, lavei o rosto dela, a frente do cabelo, joguei água no colo, ela vomitou mais um pouco e bebeu água do rio, isso enquanto eu estava bem empinada para eles, com a beira do vestido levantando. Ficou nova. Voltamos e ela já ‘tava andando em pé, cabeça erguida, sem enjoo. Nessa altura, Kesley, que também conhecia o Lombra de longa data, ficou conversando com ele bem alegre, ela ficou, do nada, bem alegre. Isso sem ter cumprimentado Windson ainda e sem ter trocado uma palavra com ele. Aliás, ele e o Pombo ‘tavam junto dos quitungos de novo. Bem, um tempinho depois, outra figura. Como se ele tivesse saído do mato, o Tripa, o cliente, apareceu e foi direto falar com o Lombra. Era um sem-vergonha viciado, porque todo mundo catou que ele tinha seguido a gente que tinha subido o morro a pé, como espião ou um coxa. O Lombra ficou bravo e era muito difícil ver esse menino bravo, ele sempre foi o mais alegre, o mais otimista também. Nos momentos piores do que a gente fez depois foi ele que falou as melhores palavras, que tudo ia dar certo. Não merecia morrer do jeito que morreu. Lei da selva. Ele ficou bravo, ficou bravo com o tal Tripa, porque, claro, o Quitungo bem ali do lado, o chefe do chefe, o cara que mandava nesse morro todo, podia achar que Lombra tinha combinado com o cliente pra ele encostar e ele vender a droga. E o Quitungo não gostou, quando esse matuto chegou e falou com o Lombra logo ele chamou, Psiu, e Lombra teve que desenrolar. Não sei o que ele falou porque fiquei longe, só assistindo, mas o que deu é que o Quitungo deixou do tal Tripa de ficar ali.

E foi, droga e cachaça, música, e Kesley mangando a prima e a prima mangando ela, o Lombra e Cajú rindo para cima, Pombo e Windson um mais colado com o outro, alguns dedos quase se alcançando que eu vi. A Diaba e o macho dela de agarra-agarra como ‘tavam desde que a gente tinha chegado no campado. Eu fui até os quitungos. Fiquei com eles e não demorou pra eu descobrir que os três queriam programa comigo e eu aceitei. O Quitungo, que era o mais bonito deles, com certeza, disse que nunca chamaria a Diaba por ela ser irmã dele, isso sem eu perguntar, porque eu ‘tava satisfeita. A lua era cheia, eu lembro como hoje, redonda e branca, branquinha igual neve, alta no céu e fazendo uma luz como se fosse uma lâmpada. O calor era o calor das noites de Enseada, como sempre é e será, mas, não sei, era uma noite diferente, era mais bonita que o normal, o céu ‘tava muito limpo, não sei se porque era o ano 2000 e não tinha tanta poluição como hoje, não sei, mas que ‘tava um dos céus mais bonitos que eu tinha visto aqui, e olha que todos ali nasceram aqui e a maioria comentou naquela noite Que céu bonito da bicheira. Eu via, enquanto me agarrava com os bandidos, a interação dos outros, quase todos eles rindo, um da piada do outro, e tomando um da cerveja do outro e fumando um da maconha do outro. E Quitungo, que ‘tava balangando já, foi até o carro dele e de onde ele tirou cachaça e cerveja ele tirou armas, uma grande que parecia um fuzil, e tinha as pistolas também. E todos eles foram até o carro pra ver enquanto eu era agarrada pelo Agué e o Farda, um de cada lado, um em cada canto do meu corpo, sem interagirem entre eles, como animais em cima da presa. Lei da selva. O que fizeram? Eles se descarregaram, até eu fui depois de atiçar meus clientes. Foram para a beirada do campado, onde um pouco descia e tinha o rio, e começaram a se revezar nos tiros. Muita coisa se desenhou nessa hora, como falei, parecia que a vida ‘tava planejando o que ia acontecer depois. Aquele momento de descarrego, de poder, juntou a gente de vez, juntou como um bonde de vez, mais do que a Maria Faceira ia fazer depois, porque as desavenças ou os desníveis ficaram de lado, todos podiam pegar a arma se quisessem e como todo mundo pegou então todos queriam o mesmo, pra se unir, pra não ser diferente do outro, pra poder mostrar algo um pro outro. Ou não é? E desenhou, porque nessa hora a gente viu que o Pombo atirava muito bem mas que o Windson atirava melhor e ficou um clima de “como ele sabe atirar assim?”. Mal sabíamos. O Lombra pegou a pistola e atirou também, e Cajú, porém mais seguro que o Lombra – e mais tarde eu ia descobrir que ele veio pra Enseada fugido, porque ele nasceu ali mas foi pro Rio de Janeiro muito pequeno e agora grande tinha voltado porque tinha matado um homem lá. O Pardal, os quitungos e o chefe deles, e eu, a gente não atirou mal, porque foi meio equilibrado. Eu mesma, que tenho um pouco de quizila com arma, atirei pra sentir. E todos pegaram as pistolas e atira- ram pouco, eu só um tiro, mas um seguro, sem balançar e o Quitungo me elogiou, ele disse Foi bem firme, nêga, gostei. Quem quis o fuzil foi ela. A gente ‘tava atirando pro céu, como só pra atirar mesmo, mas ela viu um alvo. A Diaba pegou o fuzil e encaixou certinho como deve se encaixar e eu sei disso porque o Quitungo, bêbado, soltou um comentário Me foge da memória que tu eras soldado, e andou até a beirada onde ‘tava todo mundo e começou a descarregar o pente na direção mais alta do céu. E essa é uma visão que eu não esqueço mais na minha vida, porque foi quando eu revi a Diaba que eu conhecia, com ódio, com o olhar de ódio que só quem viu conhece, e vi, o olhar focado no céu, na lua, na nuvem. Em Deus. Ela atirou com ódio, com nojo, com foco. Como se quisesse eliminar não um outro, mas tudo, eliminar a existência, a dela e a de tudo o que existisse. Ela queria matar o Criador e o tudo que criou isso aqui. Se depois ela ficou mais violenta? Sim, depois do apavoro e que o Pardal foi morto, ah, ela ficou mais violenta que os tempos de avenida. Foi como se eu tivesse me enganado, porque acreditei por um tempo que ela não voltaria a ser violenta e autoritária. Mas quando ela perdeu o macho, ela ficou doida e virou a Pombagira, como começaram a chamar ela, de uma vez. Esse bicho que tomou ela quando na noite do campado e ela atirava feito doida, que depois até o Quitungo ficou bravo e deu uma baixa nela dizendo que ela tinha descarregado todo o fuzil, esse bicho, depois que o Pardal foi morto, tomou ela de vez, e nunca mais saiu. Ela começou, dois meses depois – ela teve que se recuperar, e não só ela, todos ficaram machucados dentro e fora e o pau que ela tomou deixou ela na cama por um mês inteiro – do apavoro, do tribunal, a vender droga. Ela foi o satanás de esperta, não dá pra negar. Subiu até o terreiro velho lá em cima – o teu terreiro – e falou com Venâncio. Não sei o que ela falou que convenceu ele, mas ela conseguiu, dias depois foi chamada e se batizou no PCC. Isso ninguém diz, não é? Que a Diaba era travesti e batizada no PCC. Tudo bem que nenhum desses bandidos, nas vezes que testemunhei ela falar com eles, chamava ela de irmã, era irmão, no masculino, mas ela não ligava, não, ela tinha conseguido o que queria, e a identidade, ela sendo da realidade que era, uma mulher trans negra e favelada, o dinheiro valeu bem mais que o respeito da identidade, ela não queria converter esses bandidos, ela queria usar eles. Pois ela conseguiu, e conseguiu patrocínio, de carga, de arma, até proteção e advogado se ela precisasse. Então, ela – ela não, mas vou explicar – chegou em mim, em Pombo, Windson, Pardal, em Lombra, em Cajú e em Kesley, dentro da casa dela e disse que era pra gente virar quadrilha de vez. O Pombo e o Lombra negaram de primeiro, porque eles teriam que rasgar a camisa dos quitungos e podiam morrer, mas o que – o que tomou ela, entrou dentro dela – falou ali tinha língua boa e perguntou aos outros, e Windson, que tinha negado, depois quis, e Kesley quis e Cajú, que também tinha negado, quis. E a língua boa disse que ia fazer dar certo e era verdade pois não morremos, nem fomos presos e ainda conseguimos o dinheiro e umas notícias nos jornais locais, isso depois que a gente fez alguma coisa de verdade, como tudo isso era difícil de ignorar a gente foi, os meninos, que de primeira disseram um não bem grande, também acabaram concordando e, acho, ficaram tentados a serem maiores do eles eram, que é o sonho de qualquer um que é pequeno.

E ela começou. Pegou o dinheiro e começou a descer na Atlântico, começou, na cara de pau, a oferecer grana, grana pesada, praquelas novatas. Ela queria aquelas que ainda tinham um receio de ir pra prostituição. Ela chegava, oferecia um salário e treinamento – que ela mencionava depois, com a menina convencida – pra menina trabalhar pra ela na boca, ou nas bocas, porque ela queria mais de uma boca de fumo e realmente, depois ela conseguiu. Ela arrumou problema com a cafetina que ‘tava mandando na Atlântico, que era mais respeitosa do que a Diaba tinha sido, mas que não deixou barato e enfrentou ela, peitou essa história de roubas as filhas dela e, bem, foi essa que tomou o primeiro doce da Pombagira, não morreu mas tomou um bom doce dentro da própria casa. E nesse furacão, muitas meninas aceitaram, assim como algumas bichas, não trans, viado mesmo, aceitaram, trazidos pelo Windson e pela Kesley. Os homens que entraram foram muito poucos e os que vieram tinham que respeitar, mas depois que tudo cresceu a Diaba deu um jeito neles, se é que me entende. No fim, a Firma se formou com travesti, viado e mulher, muito parecido com que a finada Neguinha, no Morro do Pó, fazia. Neguinha era uma mulher lésbica, bem masculina, que desde novinha começou a vender droga como avião, depois vapor, foi também foguete e depois de uma briga feia com o pai, que também era bandido, mas um gerente, foi e abriu a própria boca e só aceitava mulher na quadrilha. Dizem que muitas mulheres que passaram pela Neguinha criaram seus filhos muito bem, no bom e no melhor. Com o tempo, vendo que ela era uma chefe de quadrilha, a Diaba foi se tornando autoritária. Como o Quitungo não podia mais invadir ou fechar as bocas dela porque se não ia arrumar briga com o PCC – o Quitungo era e sempre foi afiliado no CVE, no Comando Vermelho de Enseada, lá no Morro do Pó –, ainda que o PCC fosse novo aqui no Nordeste, tendo aqui, na Bahia e em Belém, acho, e fosse já motivo pra arerê e não fazer o PCC se criar, mas tinha também envolvimento dos terreiros. O Venâncio era tocador no terreiro velho e o terreiro do Quitungo descendia desse. Ele tinha que respeitar duas regras, a do crime e a do santo. Isso fez a Diaba crescer. Lei da selva. O que o tempo mostrou e contou. Esses vinte anos que passaram provam isso, porque parece, pelo menos pra mim parece, que com a Diaba morreu um mundo que não volta mais, o mundo da virada do milênio, o restinho do mundo velho, poeirento, que tinha naquela época. O que que tu pensas quando pensas em anos noventa, virada de milênio? Não te vem violência na cabeça? O Carandiru lá no Sul, o PCC, o Comando Vermelho, a Lei da Vadiagem que ‘tava no restinho de existência, massacre, facção, assalto, várias palavras que iam começar a morar no boca a boca de todo dia? É isso, ou não é? A Diaba representa isso. Ela virou dona de uma biqueira no Parque Oroguendá, depois outra no Topão, com a deixa de Venâncio, depois outra e outra, e uma segunda no Parque Oroguendá e então os clientes começaram a ser a maioria os traficantes pequenos de Cidadela, um bando de menino branquelo filho de papai que comprava droga nas bocas dela para revender na cidade, porque se sentiam bem e não eram destratados como eram pelos homens, nas bocas do Quitungo, por exemplo. Ela cresceu. Não demorou e as bichas dela começaram a ser conhecidas e o morro se dividiu, no fim. Há muitos anos o morro era quase todo do Quitungo, porque ele enfrentou as guerras, ele enfrentou a polícia e tinha acordo com delegados e tinha advogado e tinha poder de mando e o controle do medo, pois a fama de Quitungo sempre se criou pelo medo. Ela foi a primeira então que se cresceu. E uma mulher, uma travesti. O Parque Oroguendá inteiro logo foi só dela. O império dela, ou melhor: a avenida Atlântico dela. Eu acho que devia funcionar desse jeito, ela devia achar que todo mundo, todos os moradores, as mulheres donas de casa e os homens trabalhadores e as crianças, que todo mundo era filha dela. Porque ela impôs regra. Homem não assedia mulher, nem gay e nem trans; gay, sapata e trans não se expulsa de casa e se não aguenta de jeito nenhum a natureza da criatura que tu puseste no mundo, tudo bem, que saias daqui que a criatura será acolhida, e esse “acolhida” era o alistamento na Firma; não podia se prostituir, se quisesse tinha que rapar dali e teve uma que fez isso. Fábia, os deuses a tenham.

Fábia foi uma das mais bonitas que teve na quadrilha, primeiro ela foi um bom tempo vapor lá no baixo do Parque depois quis crescer, queria comandar a biqueira, que tinha o dinheiro da cebola e tudo, mas a Diaba não deixou, porque a Diaba tinha, sei lá, inveja, não sei se é essa a palavra, porque a palavra que me vem é identificação, porque a Fábia tinha a astúcia, a vontade de ser a melhor em alguma coisa uma vez na vida que fosse, algo que a Diaba tinha, o olhar reto, alto, na ponta do pé que a Diaba tinha, só que ela tinha também coisas que a Diaba não tinha e mais: nunca teve. Não tem por que mentir, a Fábia era sim uma travesti muito bonita, ela era nova, isso conta, mas a gente ‘tá falando aqui na língua trans, Fábia nasceu com o rosto já muito feminino, pouquinho pelo no corpo, sem gogó. Então ela era aquela trans que, no auge, chamava atenção em qualquer canto, hora ou lugar. E ela ‘tava nesse auge quando quis dominar a biqueira que trabalhava. Alta, magra, meio indígena, o cabelo comprido até a cintura, e cabelo dela, hein? Então, um dia chegou nos ouvidos da Diaba: além de estar fazendo avenida, um caguete soprou que viram Fábia no Barrão em uma das biqueiras do Quitungo. Esse dia eu ‘tava do lado dela, a Diaba ficou transformada, levantou da cadeira e ficou andando da janela até a porta e de novo, até que mandou, bem brava, que Codorna, Xuxa e uns outros fossem atrás da Fábia, que o vulgo era Caipora, lá onde ela ‘tivesse. Dois dias depois, a Caipora – a Fábia – sabendo que a Diaba sabia, já ‘tava não dando fuga, mas se achegando para os quitungos mesmo, porque eu acho que ele também queria cutucar a Diaba, aceitando uma trans por ali nos bondes dele, porque ele sempre foi, para os outros, para a favela, assim, no externo, um transfóbico, sempre odiou viado e travesti no público, então seria era novidade e, parece, ele queria que a Caipora ficasse ali pra provocar, e lá ela ficou porque lá ela imaginou que ficaria sob proteção, porque desde que Diaba criou poder se dividiu o terreno da favela, quem é quitungo não entra na área da Pombagira ou na área de canjanjo e quem é da área da Pombagira ou canjanjo não entra e nem pisa na área de quitungo. Só que a Caipora deu baixa, ela foi burra, vacilou. Lembra que eu falei que ela ‘tava fazendo avenida? Não porque precisava de dinheiro, o que ela quisesse ela podia pedir pro Quitungo e como tinha rasgado a camisa – tinha se saído da quadrilha da Diaba – e também tinha agora uma boca para mandar e comandar lá no Barrão, na área dele, sua coragem ficou maior. Ela fazia avenida por vício, ela era uma viciosa, gostava de sexo, ela fazia avenida pra ter sexo diferente com homens diferentes. Fazer sexo com um homem só, o grande pesadelo da Fábia. Nessa ela se estrepou. Um dia veio um cliente na avenida, parou o carro, de vidro filmado. Ela deve ter ido, inocente, inocente, imagino. O carro deve ter parado um pouco mais pra frente, porque lá na Atlântico tem uma parte que já não é mais acostamento que se a trans não tiver cuidado pode bem acontecer alguma coisa com ela que as outras não vão ver nada porque é uma parte bem mais escondidinha, não sei como que ‘tá hoje, mas tinha umas árvores grandes, assim, e ficava até uma sombra. Eu imagino o carro indo até ali e a Fábia então indo também, boba, boba, ou crente que era cliente porque a gente que foi puta, ainda mais na nossa época, quando a gente não tinha tempo pra pensar o que era o que não era, sempre pensou que todo carro que para é cliente, que não existia ou não podia existir outra possibilidade que não cliente ou macho querendo a gente. Então, ela deve ter ido, com cliente na cabeça e, quando baixou o vidro, deve ter se quebrado a coluna, assim, pra mostrar os peitinhos – que ela não tinha muito – e visto o bico apontando pra cara dela. Pois, levaram. Dizem que tem um vídeo disso espalhado pela internet aí mas não posso dizer se tem porque eu nunca procurei. Mas, pra que, se eu vi com meus olhos, ela – a Diaba – fazer apavoro e tribunal nessa menina porque ela rasgou a camisa e ao invés de dar um tiro e acabou, como fazia – até porque não era a primeira vez que ela fazia tribunal –, não, foi pro mato, mandou as bichas abrirem uma cova e chamou duas pra ajudar ela com o que ela queria fazer com Fábia, eu era uma dessas. Não me orgulho de nada desse dia mas era a ordem, era a música que a gente dançava, que todo bandido dança, e a Diaba já tinha uma régua de poder alta nesse tempo aí que, se eu me rebelasse eu rápido ‘taria ali no lugar da Fábia, tendo que dizer pra câmera do celular que o Lombra segurava Eu, Fábia, de vulgo Caipora, antes era do PCC, agora ‘tou rasgando a camisa, ‘tou rasgando a camisa porque eu escalei pros quitungos e depois tendo que pôr as mãos numa raiz de árvore e esperar, de olho fe- chado, cabelo preso no coque, suor escorrendo na testa, no meio das costas, da sola do pé, até vir a lâmina do facão e arrancar as mãos dos pulsos. Ela levantou e ficou de pé, não acho que de dor porque, olha, vou te contar uma coisa, quem morre assim do jeito que uns bandidos matam, que não é todo bandido que é assim, mas esses mais sanguinários como a Diaba foi esse dia, o julgado, na hora de tomar as facadas ou as pauladas, parece que não sente dor, pode ficar igual a Fábia ficou, que quando ela ‘tava de pé depois de perder as mãos, ela levou nos braços e nas pernas talagadas de facão, mas a cara, a cara não era de dor, era cara de choro, de choque, não parecia que ela ‘tava ali onde ‘tava acontecendo aquilo, era como se tivesse pisando num sonho, não sei dizer, mas acho que o corpo da gente faz isso, enfia a dor embaixo do tapete na hora que a morte chega, então não esqueço, vejo isso agora na minha cabeça e me dói, me dá vontade de chacoalhar a cabeça para espantar a lembrança, uma lembrança, te digo, que me vem na cabeça antes de dormir, vez ou outra. A Fábia, sem lágrima no olho, sem um brilho no olho, apenas pálida, a pele escurecida da cor certinha de uma areia de praia seca, olhando de olho arregalado, o mais arregalado que tu podes imaginar, olhar de choque, olhando pra gente, olhando para a Diaba, como uma criança perdida no mercadão, tomada em um transe de morte, de pé, sem as mãos, com bifes do corpo pendurados, e tudo ainda esbranquiçado como a carne de um frango, para logo, logo começar a brotar sangue igual quando a gente aperta uma esponja encharcada, as pernas ainda firmes, e de pé, fria, endurecida, sem parecer mesmo que ‘tivesse sentindo alguma dor. Só sei que ela levou mais talagadas nos braços e nas pernas, perdeu metade de um braço e perdeu um pé também, jogaram ela dentro da cova e deram mais talagadas. E ela não derrubava uma lágrima, só gemia e olhava pra cada uma da gente. Quando foi a hora da Diaba dar a misericórdia como fazem, e ela podia fazer do jeito do PCC, já que era a facção pra qual se bandeou a Diaba, e assim ela ia decapitar a menina ou podia fazer do jeito nordestino e enseano em que tacam a ponta fina da picareta na cabeça do nego até vazar um buraco. Mas, não. A Diaba desceu até a cova, puxou a Fábia pelo cotoco da perna e deixou ela deitada. E começou. Começou a arrancar a cabeça dela dando talagada no rosto, uma atrás da outra, com força, com uma raiva muito forte, como se a menina representasse tudo o que ela odiava. Ela não queria matar a menina, ela queria matar a passabilidade dela, a beleza dela. E só terminou quando, a menina já morta, virou uma cabeça de carne dilacerada, lábio pendurado, dentes mostrando, olho arrancado e o alto da cabeça levantado e pedaço do cérebro da bicha grudado na lâmina escura do facão. Lei da selva. Lei da vida. Ou estou errada? Essa lógica é a hierarquia da vida, basta olhar os bichos. Ou melhor, da vida não: da Natureza. Se só tem predador tudo se acaba, um come o outro até não sobrar nem terra nem predador. Se só tem presa, então uma delas vira o predador.


Você acabou de ler um conto de Samba Fandango (Aboio, 2024), de Andreas Chamorro. Gostou do que leu? Você pode adquirir o livro no nosso site.

Mais sobre a obra

Dedicado a Ana Rubro Negra, personagem travesti de Cidade de Deus, o romance Samba Fandango segue a tradição da literatura brasileira que olha para o crime na periferia sem maniqueísmo. Mas Andreas Chamorro desvia do caminho de seus antecessores ao escrever a violência como prerrogativa de quem está à margem da margem, praticada por uma quadrilha formada por travestis, prostitutas, gays e mulheres.

Ao assaltar um carro-forte, o grupo desafia a facção que comanda o fictício Morro do Oroguendá desde os anos 1980. O desejo pelo domínio na favela, no entanto, não é a única coisa que os bandos têm em comum, resultando numa trama que mais uma vez mostra o talento do autor para esmiuçar toda a complexidades das relações familiares, sejam elas de sangue, de santo ou de crime.

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